Família Zagheni: Domingos e Lina com os filhos e filhas |
Dalva e a professora Luize Clemente |
(celsodeucher@hotmail.com)
Quantos de nós já não sonhou em aprender a tocar um instrumento musical e nunca correu atrás deste sonho, imaginando ser muito difícil, ou que não teria capacidade de aprender? Quantos ainda não começaram a aprender e desistiram no meio do caminho? A história que vou contar hoje é uma daquelas para deixar muitas pessoas coradas de vergonha por não serem competentes e dedicadas o suficiente quando a questão é conquistar um objetivo.
Nossa entrevistada é Dalva Zagheni nascida em Brusque em 4 de abril de 1954. Segundo ela, desde muito pequena tinha um sonho: aprender a tocar piano. Filha de Lina Wippel e Domingos Zagheni, a mãe natural de Itajaí e o pai de Ourinhos, atualmente município de Botuverá, Dalva tem mais seis irmãos, Iolanda, Augustinho, Tereza, Salete, Luzia Marlete e Luiz Carlos.
Dalva nasceu com um glaucoma congênito, mas conseguiu enxergar razoavelmente até os 17 anos. Aos sete anos, apesar da proibição médica passou a freqüentar a escola onde aprendeu a ler e a escrever. Depois de três anos, recebeu de seu médico a triste notícia de que não poderia mais continuar estudando, por que o Glaucoma evoluía rapidamente e já havia lhe tirado grande parte da visão. Ela até poderia continuar freqüentando as aulas, porém, apenas como “ouvinte”. Tal proibição lhe obrigou a desistir das aulas.
Por causa da doença, ela era paciente freqüente de hospitais e clínicas do estado, em busca de um tratamento para o Glaucoma. Foi quando, aos 17 anos, a família decidiu submete-la a sesta e última operação em um hospital de Florianópolis. “Eu fui para o hospital enxergando e voltei para casa cega”, conta ela, hoje com 56 anos e moradora da Rua Vitor Meireles, no bairro Santa Rita.
Um fato curioso aconteceu logo após a sua volta do hospital. “Para não causar pânico na minha família eu só fui dizer que estava totalmente cega, cinco anos depois desta operação. Durante todo este tempo eu tentava me virar sozinha dentro de casa. Eu fiquei assim no anonimato, por que o meu pai não se conformava de a operação não ter dado certo. Inclusive ele queria doar uma córnea dele para mim e o médico disse que não, que inclusive ele poderia me levar para vários países em busca de tratamento que não adiantava. Nesse meio tempo eu ainda tinha percepção de luz, mas não via mais imagem, não via nada. Estava cega definitivamente. Minha família só se apercebeu que eu estava totalmente cega no ano de 1976 quando eu fui para a reabilitação em São Paulo”, lembra ela.
Mas antes de ser encaminhada para a chamada reabilitação, no ano de 1975, Dalva não agüentava mais a vontade de aprender a ler neste seu novo mundo. “Então fui estudar braile com a professora Luci lá de Rio do Sul. Em duas semanas eu já sabia ler em Braile, por que segundo a minha professora eu tinha muita facilidade. Foi a professora Luci que me indicou para ir para São Paulo que era um centro maior, por que aqui não tinha quase o que fazer no meu caso”, explica.
O que Dalva chama de reabilitação é um programa destinado a pessoas com deficiência visual. Ele ensina os “pacientes” a lidar especialmente com a realidade da cegueira. “Na minha época eram nove áreas com nove professores diferentes, sendo que cada um ensinava e acompanhava a gente num tipo de coisa. Lá eles orientam a gente a viver nesse mundo. Para mim foi a melhor coisa que fiz na minha vida. Hoje sou feliz assim”, confessa.
O sonho de tocar piano
Aos 53 anos de idade, Dalva Zagheni nunca esqueceu seu desejo de aprender música. Em 2007 decidiu que era hora de começar. “Desde pequena eu adorava música e sonhava em aprender a tocar piano. Porém com este meu glaucoma, a minha família direcionou as atenções para cuidar do problema. Durante toda a minha vida, até 2007, eu nunca tinha tido a oportunidade de aprender. Mas a música sempre esteve nos meus sonhos. No dia 20 de abril de 2007, eu tive a minha primeira aula. Ainda não cheguei ao piano, mas já estou tendo aula de teclado”, conta ela.
Mas o grande problema para Dalva começar a estudar música surgiu logo depois da sua decisão. Que professor ensinaria uma cega a tocar um instrumento? “Eu comecei a procurar e não foram poucos os professores que rejeitaram a tarefa quando eu dizia que era cega. Não sei se eles tiveram medo de não conseguir me ensinar por causa da deficiência. O fato é que eles nem chegaram a dar aula para mim”, diz.
Pelo rádio ela soube que na Fundação Cultural de Brusque havia professores que davam aulas de música. Ligou para a entidade e quem a atendeu foi a artista Luize Clemente. Conversando ao telefone, disse que gostaria de contratar uma professora particular, pois não poderia freqüentar as aulas na Fundação. Luize afirmou que a indicaria para uma outra pessoa já que nesta época não dava aulas particulares. Ao final da conversa Dalva confessa que havia um outro “pequeno probleminha”: ela era cega. “Logo que eu falei isso, a Luize já se disponibilizou e disse que ela mesma iria dar aulas para mim. Foi um sim definitivo. Eu achei a atitude dela de muita coragem e de profissionalismo”, relembra a Dalva.
“A Luize como professora para mim é uma benção. A situação minha e da Luize é como se ela tivesse andando pelo asfalto, quando dá aulas aos seus alunos normais e agora comigo tem andar por uma picada que é um caminho bem difícil. Por que ela teve que entrar no meu mundo e entender esse mundo. Não é fácil ensinar uma pessoa como eu. Além disso eu não conhecia absolutamente nada de música. A Luize para mim é um exemplo de coragem e de uma pessoa que tem muito amor pela música e pela profissão que ela abraçou. É uma pessoa maravilhosa e só tenho a agradecer a Deus e a ela. Foi Deus que me mandou esta pessoa tão especial”, diz emocionada nossa entrevistada.
O profissionalismo de Luize Clemente é conhecido dos brusquenses e sua trajetória na música local e regional vêm de longe. Formada em música pela FURB, Luize viu nesta oportunidade um desafio. Conta ela que a grande dificuldade inicial foi adaptar um método que surtisse efeito e que a aluna conseguisse alcançar seu objetivo.
“São raríssimas as escolas no Brasil que dão aulas para cegos e as partituras em Braile são poucas e nós decidimos que não iriamos usar. Por isso, logo que eu comecei a dar aula para a Dalva, busquei pesquisar mais sobre o assunto, procurando encontrar experiências semelhantes e referências onde eu pudesse obter alguma ajuda. Descobri apenas uma escola em Brasília. O fato é que nós duas tivemos que aprender muito juntas. Ela tem sido uma excelente aluna e eu tento passar para ela, de ouvido, as principais formas de se tocar o instrumento. No inicio nós íamos tateando para que ela aprendesse onde estavam às notas no teclado e aos poucos ela já foi pegando com facilidade estes ensinamentos. Hoje a Dalva toca bem diversas composições musicais e continua evoluindo”, conta orgulhosa a professora.
As duas tem algo em comum, Luize Clemente é uma das únicas professoras de Brusque que ministra aula de música a uma pessoa cega e Dalva é a única aluna cega de Brusque que dedica-se a aprender este instrumento.
Apesar de não ter nenhuma pretensão de ser artista profissional, Dalva confessa que a está aprendendo música mais por uma questão pessoal. “É mais por que gosto. Não sei se um dia vou ou não tocar para algum público. Sou bastante envergonhada. Mas eu queria tocar em igreja, por que sou católica e muito religiosa. Na verdade eu nunca esqueci o piano. Outro dia fui na Luize para conhecer um teclado que ela tem lá e acabei me apaixonando por um piano dela. Lá também escutei o timbre de órgão que tinha num teclado. Nossa que lindo. Agora eu quero comprar um destes teclados para mim”.
O gosto por piano reacendeu durante esta visita a Luize. “Se me der um piano eu sei que já consigo tocar um pouquinho. As teclas deste teclado que eu tenho são levinhas e estes outros instrumentos, como o piano, são mais pesadas, então eu estranho um pouquinho. Mas é tudo questão de me adaptar, pois nas notas musicais eu me viro”.
Perguntada sobre seus gostos musicais Dalva confessa que gosta de música religiosa, mas tem verdadeira paixão por música clássica, em especial por Bethoven e os clássicos italianos. Confessa ainda que gosta muito de música brasileira em especial Zé Geraldo, Zé Ramalho, Belchior, Alceu Valença, Gal Costa e Maria Betânia. “A música representa para mim muita coisa. Ela me leva longe, me transmite paz, coisas boas. É difícil um cego que não goste de música, por que um cego vive mais espiritualmente e a música é muito espiritual. O cego experimenta e sente a música no todo. Por isso que gosto da música clássica, por que ela te leva muito longe. Tu viaja com a música”, conta.
Na escala de coisas que Dalva adora fazer, em primeiro lugar está a música, mas ela diz que também adora viajar. “Eu moro mais aqui com minha irmã, mas eu passeio muito, pois tenho meus amigos em São Paulo e meus irmãos em Rio do Sul. Viajo sempre sozinha. Morei em São Paulo durante onze anos e fiz vários amigos lá. São também todos cegos. É tranqüilo viajar sozinha em centros grandes, pois chegando lá eles tem toda uma estrutura para te atender. Basta comunicar que de imediato eles servem a gente. Os grandes centros estão preparados para atender deficiente. Eu tenho mais facilidade para andar em São Paulo que aqui em Brusque. Mas aqui o pessoal cego também vive bem”, finaliza.
[Publicado no Jornal Tribuna Regional em 24/09/2010 - Página 14]
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