Enterro do Cônsul Carlos Renaux |
Em fins de janeiro de 1945, um domingo, eu me encontrava no interior do município de Ibirama, numa localidade então chamada de Scharlach, onde dirigia o segundo culto do dia. Após o culto se apresentaram dois senhores, que tinham vindo de automóvel, de Brusque, com o pedido expresso do presbitério da comunidade evangélica de que acompanhasse os seus dois emissários a Brusque e que, na manhã do outro dia, oficiasse no sepultamento do cônsul Carlos Renaux, que acabara de falecer. Não havia pastor na área que falasse português sem acentuado sotaque alemão. Como para esse sepultamento compareceria o governador do Estado, Nereu Ramos, mais um sem-número de autoridades, não havia outra alternativa. Eu teria de acompanhá-los na hora, para viajarmos a Brusque, durante a noite. Era um verdadeiro sequestro. Passarei a descrever o evento de forma mais minuciosa, porque, ao fim das coisas, ele me levaria a pastorear a comunidade de Brusque, por dois períodos, o que, por sua vez, interferiria no próprio curso de minha vida.
Um tanto inseguro diante desse caso inesperado, deixei convencer-me da premência situação. Não me recordo do que fiz com minha aranha. Lembro que voltei com o carro dos dois emissários e, após breve pausa na casa pastoral de Ibirama, acompanhei os dois brusquenses (um deles era o senhor Walter Appel) a Brusque. Saímos já a altas horas da noite, e a estrada era ruim. Claro que era de terra; não havia, então, estrada de asfalto no Estado. Além disso, havia dezenas de passagens de nível de trecho, cruzamentos com a via férrea, e assim chegamos a Brusque só pelas 4:00 da madrugada.
Fui levado à vila dos Renaux, no alto de uma colina, e vi o influente industrial e líder político da região deitado em seu esquife. Fui inteirado da biografia do falecido e da situação que teria de enfrentar no dia seguinte. Eu estava cansado, e com a cabeça pesada de sono, mas não consegui mais adormecer, no quarto que eles haviam preparado para mim.
O enterro do cônsul foi um evento espetacular. Fora declarado feriado na cidade. Calculava-se que umas dez mil pessoas participaram de alguma maneira do sepultamento, alinhando-se ao longo das ruas pelas quais o féretro deveria passar. Levado à sala na qual se achava o esquife, pelas 9:00 horas, deparei-me com uma dúzia de autoridades eclesiásticas católicas (a segunda esposa de Renaux, bem como um filho, eram católicos), entre elas, o bispo de Florianópolis. Apertei cordialmente a mão dele, estendida para ser beijada, e retribui seus sorrisos, quando ele se deu conta de que eu não era um de seus padres, mas sim, o pastor luterano, prestes a oficiar o sepultamento.
Tentei esquecer quem era a pessoa estendida lá no esquife e os vultos importantes que tinham comparecido para lhe prestar a última homenagem. Eu daria o recado que tinha que dar. Estava muito cansado, mas também sabia que, numa situação dessas, eu seria capaz de me esquecer das próprias mazelas, de superar o cansaço, e de identificar-me totalmente com minha pregação.
Ao entrar na igreja, à frente do féretro, vi que ela estava lotada até o último lugar. Diversos bancos se achavam ocupados por autoridades, vindas de toda a região. Lá estava o governador, Nereu Ramos, ao qual me apresentaram, na própria igreja. Confesso que fiquei com as pernas um pouco bambas. Eu tinha 21 anos de idade e me achava num lugar que deveria ter sido ocupado por um homem experiente e maduro. Mais uma vez me esforcei para esquecer o status das pessoas que se achavam ao meu redor, concentrando-me na mensagem.
De início, falei do cônsul, de seu pioneirismo, seu empenho pela cidade, de seu destino pessoal, de seus feitos filantrópicos, que eram numerosos. Depois fiz uma pausa e continuei: “Mas agora o cônsul está morto. Nada do que ele foi e fez o distingue de um pobre mendigo que igualmente chegou ao fim da vida. Perante Deus contam outros valores, não contam nossos méritos humanos. E desses valores vamos falar agora”. Depois fiz minha pregação, bem como costumava fazer no enterro de gente comum.
Ao fim da celebração, fui tomado por um secreto temor de que talvez os familiares tivessem levado a mal a minha pregação nada diplomática, mas não tinham. E até o bispo e o próprio governador afirmaram, num breve diálogo que cheguei a ter com eles, que concordavam plenamente com minha pregação, e que era assim mesmo como eu tinha falado.
Não sei se foi humildade, ou se foi orgulho, ou um misto de ambos: não aceitei a soma considerável que, por parte da família, eles quiseram me dar em recompensa por meu serviço. Era o equivalente a dois salários mensais meus, e eu, naquele tempo, vivia bem apertado. Pedi que mandassem a soma a São Leopoldo, onde a igreja lutava para sobreviver a uma crise sem igual. Dohms, mais tarde me escreveria uma carta em que, humilde, agradecia pelo dinheiro, que viera numa hora bem oportuna.
Um detalhe dos eventos do dia, que ainda hoje lembro, e que me deixou desconcertado. Após o final do sepultamento do cônsul, disseram-me que haveria um enterro a fazer, mas que era coisa rápida. Uma pessoa desconhecida morrera no lugar por acaso, e que só tinha dois ou três familiares, que estavam aguardando num canto do cemitério. Realmente só havia três pessoas que vinham acompanhando o caixão. Falei brevemente com eles. O homem morrera solitário, assim como tinha vivido. Quase ninguém o conhecia.
Jamais eu tinha experimentado um contraste tão gritante como aquele entre o enterro do cônsul e o do maltrapilho que vivera à margem da sociedade. Bom que, no segundo enterro do dia, eu poderia pregar o mesmo evangelho que tinha pregado no primeiro, sem tirar nem pôr nada. O evangelho de Jesus Cristo, o Salvador dos pecadores, é realmente um tesouro sublime. Vale para o rico industrial e vale para o maltrapilho pobretão, e oferece salvação incondicional a ambos.
(Fonte: Extraido do livro “INNI, um menino da roça” (memórias de minha juventude) – Pastor Lindolfo Weingaertner. Enviado por César Diegoli e publicado no Jornal Em Foco, edição nº 107 de 19/06/2012).
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