sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

DONA TUTA: "NÓS VENCEMOS EM BRUSQUE"

Gertrudes Silveira a “dona Tuta” e seu esposo Valmor de Souza, o seu “seu Tuto
Quem não conhece a “Dona Tuta”? Certamente poucas pessoas em Brusque sabem que Gertrudes Silveira, é a mesma que a maioria conhece como dona “Tuta”, uma afrodescendente mui guerreira que “comeu o pão que o diabo amassou” e que hoje confessa-se vencedora. Mas se não lembrar quem é a dona “Tuta”, ai vai mais uma dica: era a esposa do seu “Tuto”. Pronto, com mais esta palhinha não tem como errar.

Brincalhona e cheia de histórias, das mais engraçadas as mais tristes, ela me recebeu em sua casa no bairro São Luiz numa noite de final de março de 2010. “Eu já te conheço Celso... Me lembro de ti com aquele violãozinho debaixo do braço indo rezar novena na minha casa lá encima do morro, na nova Brasília”, disse-me ela. Fiquei preocupado com a minha memória, pois a primeira vista me pareceu nunca tê-la visto na frente.

As lembranças não demoraram a vir. Era a mesma senhora que no final da década de 1980 recebia a mim e a um colega de seminário na sua humilde residência. Lembro-me que muitas vezes chegávamos na casa dela com a barriga roncando de fome para animar as novenas com cantos litúrgicos. No final sempre éramos brindados com um cafezinho e não raramente deliciosas bolachinhas, que chegávamos a esconder pelos bolsos para “roer” mais tarde. Eu era estudante interno do SEFISC (Seminário Filosófico de Santa Catarina), localizado ainda hoje no bairro Nova Brasília e cursava filosofia na antiga FEBE.

Tempos bicudos aqueles, tanto para Gertrudes, seu esposo e filhos como para nós seminaristas. Não raras vezes nossa intenção nestas animações era recebermos alguma comida da bondade alheia. Uma bolachinha, um cafezinho, um pedaço de pão, enfim algo para nos matar a fome, visto que no seminário a comida havia virado um luxo. Quantas vezes fomos dormir com a barriga vazia e ainda tendo que ouvir o sermão do padre dizendo que “passar necessidade era um meio de purificar nossas almas, para que no futuro fossemos bons padres”. Era a politização da pobreza... A adoração daquilo que o mundo inteiro queria se livrar e nós tínhamos que sofrer na pele para aprendermos como é que seria “ser pobre”. Para mim soava hipocrisia, já que sempre fui pobre e passar fome não era nenhuma novidade.

Mas voltando ao assunto. Cheguei a casa de Dona Tuta acompanhado de sua nora Dirce Assalin da Silva Borges, esposa de seu filho Sidnei Borges, o “neguinho”, para os mais íntimos. Na área da bela residência, se “deliciando” com um cigarrinho ela nos oferece uma cadeira e nem bem dá tempo para sentar já começa a contar sua história. Preocupado que a memória fosse me deixar na mão propus que gravássemos a conversa.
Os Silveira Borges chegaram em Brusque no verão de 1987. Gertrude nasceu no dia 17 de março de 1947 em Indaial, SC. Neste município sofreu com a família muitas agruras. Seus pais Euclides e Dóris Silveira eram agricultores e tiveram onze filhos e nem sempre tinham o necessário para que todos pudessem viver com o mínimo de dignidade.

Ainda muito jovem Gertrudes conhece Amilton Miranda Borges, filho de uma família de agricultores residente em Trombudo Alto. No ano de 1963 os dois se casam e mudam-se para Curitiba. Segundo dona Tuta, foram oito anos de sofrimento naquela cidade. “Éramos muito pobres e ainda por cima ele me maltratava. Chegou a me esfaquear quando eu ainda estava no resguardo do meu primeiro filho Sidnei. Eu nunca perdoei ele por isso. Tenho as marcas no meu braço e no meu corpo até hoje [mostra as cicatrizes das facadas que levou do marido] e procuro nem olhar para nem lembrar daquele desgraçado.

O marido além de lhe tratar mal era ausente na casa. “Se dependesse dele nossos filhos tinham todos morrido de fome”, afirma. “Ele vinha em casa praticamente só pra fazer filho”, diz indignada. Em 1971 Gertrude consegue definitivamente se livrar do Amilton e separada joga-se de cabeça no trabalho. Caprichosa e dedicada, em todos os lugares que trabalhou diz ter sido muito bem tratada e reconhecida.

Ela passou a residir com as crianças numa pensão que seu salário mal dava para pagar o aluguel do quarto. “Eu não tinha nem uma panela para fazer comida para meus filhos. Eles viviam vestidos de trapinhos. Eu comprava marmita fora e trazia para casa e nós comíamos metade dessa marmita para sobrar a outra metade para comer depois.  Meu sonho era comprar um fogareiro e poder fazer alguma coisinha para as crianças no quartinho da pensão. Mas nem isso dava”, lembra-se.

Sua vida começou a mudar no dia em que passou a trabalhar numa panificadora da grande Curitiba em 1972. Neste estabelecimento era a responsável por fazer os salgadinhos, coisa que faz e muito bem até os dias atuais. “Meus patrões eram gente boa e sempre me deram a maior força. Inclusive a minha patroa e as minhas amigas de trabalho sempre me davam conselho para arranjar um marido, já que além de ajudar a criar meus filhos, ele poderia me ser um bom companheiro. Mas eu não queria nem saber de homem. Tinha verdadeiro pavor dos homens e queria distância deles”, enfatiza ela.

Um acontecimento, no entanto, mudou o curso da sua vida e das convicções que vinha nutrindo em relação aos homens. Além disso selou seu caminho rumo a cidade de Brusque. “Uma amiga que trabalhava nesta padaria estava grávida nos últimos dias. E certa manhã ela sentiu-se mal e achamos que o bebe estava vindo. Chamaram um taxi e eu fui com ela até a maternidade de Guadalupe, em Curitiba. Logo que entrei no taxi eu vi aquele homem bonito e charmoso, mas não falei nada. Na estrada a minha amiga me cutucava e dizia para mim observar que homem interessante. Mas eu tentei não demonstrar nenhum interesse”, conta.

A verdade é que aquele taxista era “o amor da sua vida” e meses depois os dois estariam juntos. O taxista era o brusquense Valmor de Souza, carinhosamente conhecido por “Tuto”, filho de José Eugênio e Olivia de Souza. “Uma pessoa maravilhosa para mim e para os meus filhos. Foi o grande amor da minha vida”, diz emocionada Gertrude.

Assim como o dia que se encontraram, dona Tuta não esquece jamais o dia 20 de janeiro de 1973. Foi neste dia que ela e seu Tuto decidiram passar a morar juntos. “O que eu sofri com o outro ele me fez esquecer me dando carinho e amor”, afirma. Além disso Tuto adorava seus filhos e os tratava como filhos seus. Deste dia em diante a vida passou a melhorar para Gertrude e as crianças. “Todos os meus filhos sempre respeitaram ele como se fosse o pai deles e isso o Valmor tinha o maior orgulho”, relembra ela.

Em 20 de junho de 1985 o casal decide vir morar para Santa Catarina e muda-se para a localidade de Zimbros. Três anos e oito meses depois mudam-se para Brusque. Em 1988 alugam uma casa na localidade de “Bacia” no bairro Nova Brasília. Ali novamente a família passa por dificuldades. Valmor dedica-se a profissão de caminhoneiro e mais tarde de motorista de ônibus e ela passa a fazer faxina nas casas de particulares.

“Logo consegui emprego na Pipocas Bilú, da família Heil, como faxineira da fábrica. A empresa ficava bem perto da nossa casa, mas o ganho era pouco. Não demorou muito consegui emprego na residência do casal Roberto e Vivian Zen e estou lá até hoje, já faz mais de 20 anos. Com orgulho ajudei a criar os filhos deles e me sinto querida pela família e pelas crianças que agora já estão grandes. Essa casa onde resido eles me deram para morar enquanto eu viver. Eu me sinto realizada no trabalho e na minha vida, pois graças a Deus consegui criar os meus filhos que também estão cada um por sua conta e eu tenho saúde para continuar trabalhando e vivendo uma vida agora sim boa.

O apelido de “dona Tuta” veio para fazer par ao “seu Tuto”, como era conhecido Valmor. Com ele Gertrudes teve mais dois filhos, Marcos e Andréia. Valmor, faleceu em 24 de outubro de 2008 de um Acidente Cardio Vascular (AVC). “Sinto muita saudade dele, pois este homem me fez muito feliz. Mas não paro de me divertir e pretendo continuar viajando e conhecendo novos lugares, como eu fazia quando ele era vivo. Além disso não largo mão de ir nos bailes da terceira idade com as minhas amigas, pois acho que eu tenho direito de me divertir”, diz a altiva dona Tuta.


Breves detalhes da genealogia da família

Os avós paternos de Dona Tuta foram Dóca e Onimia Silveira. O casal teve sete filhos: Iraci, Pupi, Dulce, Izidoro, Orácio, Valcir e Euclides. Este último, pai de nossa entrevistada. Com os avós paternos Gertrude afirma que não teve muita convivência e por isso não possui mais detalhes sobre eles, lembrando-se apenas que eram agricultores em Indaial. Já dos avós maternos, Agenor Wolf e Ana Maria dos Santos, Gertrude sabe tudo. “Meu avô era tropeiro e essa minha avó era bem negra, uma santa na terra. Ela tinha uma sala cheia de imagens sacras. Nessa sala ela vivia rezando. Era uma benzedeira poderosa e nunca cobrou um centavo de ninguém”, diz. Agenor e Ana Maria tiveram oito filhos: João, Miguel, Irineu, Paulo, Edurina, Avandina, Osmarina e Dóris. Esta última, mãe de dona Tuta.
Dóris Silveira Wolf, mãe de "dona Tuta":


Os pais de Gertrude Euclides Silveira e Dóris Wolf, residiam em Indaial e o casal teve onze filhos: Hélio, Gertrude, Nadir, Iraci, Iris, Beatriz, Ivo Célio, Ademir, José Pedro, José Carlos e um outro irmão que ela não lembra o nome pois faleceu dias após o nascimento.

Nossa entrevistada, Gertrude Silveira e Amilton Miranda Borges tiveram quatro filhos: Sidnei, Siderlei, Elvis e Altair. Do segundo casamento de Gertrude com Valmor de Souza nasceram ainda, Marcos e Andréia.
O filho Sidnei Miranda Borges casou-se com Dirce Turola Assalin da Silva e desta união nasceram três filhos: Geovane, Letícia e Jéssica.

Siderlei Miranda Borges nasceu em Curitiba e casou-se com Maria Aparecida da Silva. Desta união vieram dois filhos: Rodrigo e Rafael.

Elvis Miranda Borges casou-se com Gaudina Ferreira e desta união vieram três filhos: Juliana, Matheus e Ester.

Altair Miranda Borges, o último filho que Gertrude teve com Amilton, faleceu nos primeiros meses de idade em Curitiba.

Marcos Souza o primeiro filho do segundo casamento de Gertrudes, casou-se com Neuza Maria Pött e desta união nasceram um casal de filhos: Carlos Eduardo e Brenda.

Andréia Souza, também do segundo casamento seria a única filha que Gertrude teria. Uma fatalidade lhe ceifou a vida também aos seis meses de idade em Brusque.

Detalhadamente a história desta família será aprofundada no livro Brusque Afrodescendente com previsão de lançamento neste ano de 2011.

[Publicado no Jornal Tribuna Regional, ano XV, nº 732, de 28 de janeiro de 2011, página 14]

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